Muito casaco e muito tempo pela frente, ainda no morno domingo à noite.
As pessoas vêm chegando, se aglomerando perante os ônibus fechados. Os porta-malas ainda também fechados. Todos esperam que a boa vontade de algum funcionário resolva abrir os benditos compartimentos, para que não mais seja preciso arrastar mochilas, samsonites e primicias no caminho de ida e volta à (e da) lanchonete. Suco de maracujá. Nutry maracujá. As últimas despedidas. Um papo furado, sem assunto, enquanto tudo permanece hermeticamente fechado: ônibus, porta-malas, poltronas, over head compartments, ar condicionado, travesseirinho e cobertores genéricos (porém honestos no combate ao frio noturno). As listas de passageiros são conferidas. Abrem-se as tampas, e bagagens variadas encontram seu lugar, inclusive uma outrora deslocada mesinha de computador e um mini-yorkshire. Minutos aos montes se passam até que a inevitável fila se forma, aguardando a abertura dos portões (de gente, não coisas). O papo continua sem assunto, naquela conversa mole e gramaticalmente relapsa de "ai, amanhã vou estar cansada..." Um dado momento - vai saber quanto se passa!?! - é finalmente possível entrar, reconhecer os assentos, acomodar os pertences.
O televisor apagado desta vez não ilude ninguém. Passageiros conformados sentam-se e miram o horizonte do segundo piso do veículo. Uma passageira afoita vai e vem pelo corredor: primeiro, só, depois acompanhada. Vem a mocinha da empresa junto. Elas vão e vêm pelo corredor, procurando por algo que não está lá. Pedem licença para revistar sob as poltronas alheias, sobre as poltronas alheias, entre as poltronas alheias. Não está lá (seja o que for). A passageira afoita desce. Sobe. Reclama. Desce outra vez. Diz que isso é um absurdo, é roubo, etc. e fica indignada. Ela não possui o ticket de identificação do item perdido, ou roubado, não se sabe ao certo... A viagem já começa (antes de começar, propriamente dita) atrasada. 15 minutos. 20. Meia hora e nada. A viajante alegadamente vilipendiada se decide a chamar a polícia. Mais alguns minutos para os policiais chegarem. A moça presta queixa. A moça fica prestando queixa e o ônibus parte com uma hora inteira de atraso - sem ela, pois supostamente sua chave de casa e seus documentos estavam na suposta bagagem de mão não-identificada e supostamente desaparecida.
Inicia-se a jornada e o tédio toma conta. Sem filme, sem música, sem luz, sem acreditar que alguém vai chegar em tempo para o trabalho da segunda-feira, todos se rendem. Uma eternidade de estrada, postes, mato e caminhões passa na noite entorpecente. O sono domina. Na primeira parada, a promessa não-cumprida de se continuar a bordo para receber um lanche padronizado (Coca-Cola e misto quente) a cargo da empresa. Os claustrofóbicos e afobados saem, voltam e tropeçam nos que dormem apesar de tudo. Segue o percurso. Homens, mulheres e criancinhas voltam à embriaguez sonolenta de antes. Cedo demais, uma segunda parada. Ou seria terceira? O estado alfa em que a maioria se encontra não permite distinguir...
O veículo empaca num posto de gasolina deserto, perdido no meio do nada, às três da manhã (mais ou menos). Descem todos, retiram-se bolsas, pochetes e cachorro (!!!) de dentro do ônibus. A madrugada no meio do nada é fria. Após o atraso exorbitante, os funcionários da empresa se convencem de que é necessário (e justo, falemos a verdade!) mandar buscar o tal lanchinho de misto quente e Coca-Cola prometido na parada anterior. Mandam buscar também um mecânico. Parece piada. Ali todos permanecem, um ou outro enrolado no tal cobertor xadrez, alguns batendo papo, poucos tentando manter o bom-humor e a maioria com cara de poucos amigos, até as sete. Uma maravilha, para quem pretendia estar, a esta mesma hora, tomando uma bela chuveirada em seu próprio banheiro... Chega o socorro: um ônibus substituto, porque o original, bem... vai para o saco. Removem-se todos os pertences e pertencedores. Uma passageirinha reclama "Não, mamãe, eu quero ir no outro!", mas nada feito.
O trajeto segue praticamente em paz. Se não considerarmos o horário, claro. Lá pelas dez da manhã os celulares voltam a entrar na área de cobertura e os trabalhadores "do meu Brasil" ligam para seus serviços, narrando esta epopéia moderna.
À uma da tarde, finalmente, casa.
Sem chance para o descanso. Banho, almoço e trabalho na seqüência. Ai.
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